Type

Data source

Thumbnail

Search results

5 records were found.

A produção de vinho de talha na actualidade não é mais do que a adopção e utilização de uma prática e saber-fazer ancestral, trazido e impulsionado no concelho de Vidigueira pelos romanos, como assim servem de testemunho as grainhas de uva encontradas aquando das escavações nas Ruínas Romanas de São Cucufate, próximo de Vila de Frades. O vinho de talha é o culminar de várias fases de trabalho que surgem no campo, com a plantação da vinha, as podas, as enxertias, a rega, a vindima e outros processos necessários para se conseguir a passagem e transformação dos frutos das videiras no precioso néctar tão apreciado e, neste caso, com a especificidade de ser produzido de forma artesanal. Ao falarmos em vinho de talha, é imprescindível falar no recipiente que lhe dá origem e que, também este, vem da terra, a talha ou o pote (de menor dimensão/capacidade). Aqui, depois de colhidas e esmagadas as uvas, irão ser depositadas e mexidas diariamente (com o rodo) durante o processo de fermentação que irá dar origem ao "vinho novo" cerca de 40 dias após ter sido produzido e que, coincide, na maioria dos casos por ocasião da celebração do São Martinho, gerando momentos de alegria, confraternização dominados muitas vezes pelo cante alentejano cujo burburinho ainda hoje podemos ouvir vindo das inúmeras adegas particulares ou das escassas tabernas ainda existentes (espaços de convívio masculino por excelência).
A ARTE DE FAZER PÃO Até ao ano de 1999, havia ainda no concelho de Vidigueira, quem persistisse em fabricar o pão da forma mais elementar e ancestral, amassando-o com o "suor do rosto". Constituídos em pequenas empresas familiares estes padeiros fidelizaram práticas e costumes que aprenderam dos avós. Vê-los amassar, tender e cozer o “pão nosso de cada dia”, constituía uma verdadeira viagem no tempo, onde nada se perdia e a memória rebuscava mistérios e segredos. Cada manhã, por volta das 6h, iniciavam a labuta diária, apenas interrompida pelo descanso de domingo. De bata, barrete e avental brancos, começavam por encher de farinha o alguidar de barro, colocado sobre um banco de madeira com fundo de buinho, ao centro da “casa da amassaria”, de paredes caiadas, onde eram visíveis gravuras com imagens sagradas. Após a medição da farinha, amassada consoante a venda diária, misturavam-na com o fermento obtido a partir da massa guardada da última amassadura, com o fermento inglês, o sal e a água morna, a qual permitia não apenas uma mais fácil dissolução dos ingredientes, como também maior rapidez no “fintar” da massa. Ao iniciarem a amassadura, a farinha acumulada num dos lados do alguidar era lentamente absorvida pela água da “presa”, enquanto o movimento dos braços começava a “dar corpo à massa”, libertando um som borbulhante que pouco a pouco se diluía na fusão da mistura. Assim começava o milagre do pão, na cadência dos gestos, no balancear do corpo a um ritmo crescente, ante a exigência da espessura da massa, trabalhada sempre para o mesmo lado para não “desligar”. ”É preciso começar a puxar as pastas” diziam, “pois nelas está a elasticidade da massa”, que deve ficar “enxuta” não permitindo que as pastas se peguem às mãos. Aí, “está boa para fintar”. Nesta fase cumpriam-se alguns rituais sagrados. Antes de cobrir a massa, desenham-lhe ao meio, com as mãos, uma cruz, cravando-lhe de seguida os cinco dedos simbolizadores das cinco chagas de Cristo. Seguidamente, a fé completava-se numa oração convicta: “Deus te acrescente massinha, Assim como a Senhora fez ao pão, Na arca da pastorinha.” Após o ritual colocavam o sinal na parede do alguidar, este feito com um pouco de massa que retiravam da amassadura para marcar a altura aproximada que esta teria de atingir ao fim de mais ou menos 2h de levedação. A experiência induzia a colocá-lo sem grandes enganos, no local exato, havendo por vezes alguns imprevistos (calor, fermento a mais) em que a massa “salta o alguidar”. A massa tapada com o pano branco e os cobertores permanecia em absoluto descanso durante cerca de 2h até levedar. De seguida, uma nova tarefa se impunha: o aquecer do forno. De pequenas dimensões, estes fornos não necessitavam mais do que três feixes de lenha para aquecer e conservar o calor imprescindível à cozedura do pão. Construídos no quintal da casa, tinham o interior redondo e revestido de tijolo, assente numa base de ladrilhos sobre uma camada de areia suportada por outra de bagaço. O exterior era caiado de branco. Lenta e pacientemente, com a ajuda do forcado (pau comprido com a ponta em metal, usado para introduzir e mexer a lenha no forno), estes padeiros colocavam os feixes de lenha no interior do forno para, num ápice, o iluminarem num clarão de tons quentes. Enquanto a lenha ardia num assombro de cores, faziam os preparativos para tender, começando por verificar se o “pão estava finto”. Libertavam o alguidar das cobertas e observavam a massa numa atitude quase religiosa. Se esta tremia, atingia ou ultrapassava o sinal, o “pão nosso “ estava pronto para tender. Puxavam as últimas pastas e retiravam o sinal, não fosse este misturar-se na massa. Seguidamente, os tabuleiros de madeira eram colocados próximo da amassadura e forrados com um panal branco imaculado, onde começavam a dar forma ao pão. Polvilhavam a tábua de tender com farinha e aí, em gestos destros e rápidos moldavam “pães estendidos” e “de cabeça” que colocavam sucessivamente no tabuleiro em “caminhas” feitas no panal. Tendida a massa deixavam-na “fintar de mão” dentro do tabuleiro coberto por um panal, enquanto tratavam do forno já quente, que era preciso varrer e preparar para “deitar o pão”. Após esta operação lançavam-lhe no interior uma mão cheia de farinha, que sobre os ladrilhos quentes adquiria um tom dourado, sinal que a temperatura estava ideal para a cozedura e para o “solo” do pão. O calor interior branqueava o forno, numa tonalidade sépia que se desenhava reconfortante ao olhar. Aí seria metido o “pão de cada dia”, “amassado a sangue”, cozido com fé e abençoado pelos deuses. Aproximava-se a fase final, a cozedura. Vergados pelo peso, os padeiros colocavam os tabuleiros sobre o poial e habilmente retiravam os pães que ajeitavam sobre a pá e um a um introduziam no forno, num voltear rápido que os depositava suavemente sobre os ladrilhos quentes. Finda a tarefa e antes de fecharem a porta lançavam um punhado de farinha sobre o pão dizendo: “A farinha a arder E o pão a crescer” ao mesmo tempo que faziam o sinal da cruz e colocavam os tabuleiros de madeira ao alto para o pão “subir”. Uma vez fechada a porta, todo o calor se concentra na cozedura, que ao fim de 2h estará pronta a desenfornar. Terminada esta fase, um a um, tiravam os pães estaladiços e loiros, que “amanhavam” orgulhosamente sobre o tabuleiro de madeira, esquecendo todas as canseiras de uma labuta diária iniciada às 6h de cada manhã. Assim se cumpria o milagre do pão numa história de padeiros que arreigados aos seus princípios e às poucas exigências da sua pequena produção, insistiam em manter vivas as ancestrais tradições, como se o tempo jamais tivesse passado. Texto de Luísa Costa