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"A participação de Mário Sacramento no desenvolvimento do neorrealismo reveste-se de singularidades que não se limitam à perspetiva do ensaísta mas designam também problemas gerais e de fundo.Em várias oportunidades, Sacramento referiu a sua pertença ao núcleo inicial da geração. Mas olhar retrospetivo de Mário Sacramento sobre as condições em que se afirmou 'a minha pobre geração' («Diário», p.31) é cruel: 'Não tendo podido afirmar-se, no plano ideológico, filosófico e político-social, em termos de linguagem direta, dados os óbices da Censura, ausência de jornais e revistas, impossibilidades de reunião e agrupamento, apreensão de livros, prisões arbitrárias, etc, etc, a minha pobre geração adoptou a literatura como sucedâneo desses meios de comunicação e diálogo com a realidade. Por outro lado, não tendo podido aceder com facilidade (salvo em casos de excepção) às obras básicas do pensamento diamático, cingiu-se, na maioria das vezes, a livros secundários, de divulgação adulterada, ou, até, aos simples panfletos. O que foi viciado, lá fora, pelo culto da personalidade e pelo dogmatismo simplista, teve cá a agravante incrível de tudo isso. Teve – e tem!' («Diário», p.31). Mais que uma análise extensiva deste passo, interessa agora anotar o que, na autoconsciência de Sacramento, foi o resultado prático dessa experiência: 'Enquanto a opção se pôs em termos do mais cru primarismo, remeti-me ao silêncio intelectual ou ao estilo rebarbativo, quando a espaços o quebrava, pois sempre me pareceu pior o desvio de elite que o das massas: a intervenção ativa, por inoperante e ingénua que seja, mantém-nos solidários com a nossa humanidade e em guarda conta a alienação, enquanto que o intelectualismo estrito, muito embora justificado e legítimo, aristocratiza, isola e hiper-aliena. Acomodei-me à praxis do imediato e do quotidiano e amordacei o pequeno escritor que trazia em min, dando primazia ao político, que talvez inicialmente não fosse, mas que, à força de experiência, acabei por ser' («Diário», p.31).Do decurso da atividade crítico-ensaísta, é a partir do neorrealismo que intervém, debate, polemiza. E é uma identificação do neorrealismo que ensaia em obras de maturidade como a monografia «Fernando Namora. A obra e o homem» e «Há uma Estética Neo-Realista?». O vínculo neorrealista de Mário Sacramento não está em causa – nem é sequer o problema mais interessante.O contributo de Mário Sacramento para um entendimento global do neorrealismo, sim. Precisamente porque é de dentro que pensa e escreve, a elaboração de Mário Sacramento pode e deve ser lida como um itinerário do neorrealismo em busca de explicitação teórica (...)" (Pita, 2022).De grande valor documental, o espólio literário de Mário Sacramento compreende a produção literária e intelectual conhecida do escritor, nomeadamente os apontamentos e as versões preliminares, provas tipográficas manuscritas e datiloscritas com emendas e notas à margem, documentação de suporte aos livros que publicou. Com destaque para o conto «O Ápis» e os ensaios «Há uma estética neo-realista?», «Eça de Queirós: uma estética da ironia», «Fernando Pessoa: poeta da hora absurda», «Ensaios de Domingo», «Fernando Namora» e «Checoslováquia, 1968».Neste espólio evidenciamos a importância dos cadernos nos quais Mário Sacramento escreveu ao longo dos anos 1967 e 1968. Este ‘diário’ foi anunciado pelo escritor com o título de «Aqui jaz quem me matou», mas nos cadernos onde ele o escreveu figura sempre o título «Envelhecer». O «Envelhecer I» tem a seguinte indicação por Mário Sacramento: "Estes cadernos só deverão ser lidos após a minha morte e, se quiserem, publicados com os retalhos de outros papéis meus. O «Diário» foi publicado em 1975. «Carta-Testamento» é um título que também incorpora este espólio, sob a forma de original manuscrito e com a seguinte indicação por Mário Sacramento "Para ser aberto quando eu morrer".No que diz respeito à correspondência, é importante ressaltar o conjunto de cartas escritas por Mário Sacramento à sua mulher (Cecília Sacramento) e filhos (Rui e Clara Sacramento), correspondência essa expedida da Prisão do Forte de Caxias, aquando da sua prisão em 1953 e 1955. É importante referir que no conteúdo destas cartas e postais surgem pequenos contos e desenhos direcionados à sua família. Relativamente à correspondência recebida, destacam-se nomes como Agostinho da Silva, Álvaro Salema, António Sérgio de Sousa, Arlindo Vicente, Costa Barreto, Eduardo Prado Coelho, Fernando Namora, Joel Serrão, Mário Braga, Óscar Lopes, Taborda de Vasconcelos, Vasco de Lemos Mourisca, Vergílio Ferreira e Victor de Sá.Este espólio contém, ainda, documentação relacionada com atividades culturais, nomeadamente o Congresso Internacional da Comunidade Europeia de Escritores (Roma, 1965), e atividades políticas, como o I Congresso Republicano de Aveiro (1957), no qual Mário Sacramento fez parte da Comissão Promotora, assim como Álvaro Seiça Neves, João Sarabando, Armando Seabra, entre outras personalidades da época.Ao nível de suporte fotográfico, destaca-se o facto de Mário Sacramento ter no seu espólio fotografias de cariz familiar, bem como de carácter político. Encontram-se também reunidos pelo autor críticas à sua obra literária, bem como outros recortes de imprensa de interesse contextual. Da coordenação de João Sarabando e Joaquim Correia, o espólio contempla um álbum de homenagem, "In Memoriam de Mário Sacramento", que além de fotografias, acondiciona poesia, desenhos, ensaios e correspondência do autor. Com destaque também para outros cinco álbuns de homenagem a Mário Sacramento, com documentação diversa organizada pela família do escritor no seu pós-morte.Importa ainda referir que, juntamente com o arquivo pessoal, foi doada uma biblioteca com cerca de 550 monografias e um número considerável de publicações periódicas, que se encontram tratados bibliograficamente em base online Koha.